sábado, 9 de novembro de 2013

Para nascer um verso


"...Ah, mas que significam os versos, quando os escrevemos cedo! Devia-se esperar e acumular sentido e doçura durante toda a vida e se possível durante uma longa vida, e então, só no fim, talvez se pudessem escrever dez versos que fossem bons. Porque os versos não são, como as gentes pensam, sentimentos (esses têm-se cedo bastante), - são experiências. Por amor de um verso têm que se ver muitas cidades, homens e coisas, têm que se conhecer os animais, tem que se sentir como as aves voam e que se saber o gesto com que as flores se abrem pela manhã. É preciso poder tornar a pensar em caminhos em regiões desconhecidas, em encontros inesperados e despedidas que se viram vir de longe, - em dias de infância ainda não esclarecidos, nos pais que tivemos de magoar quando nos traziam uma alegria e nós a não compreendemos (era uma alegria para outro - ), em doenças de infância que começam de maneira tão estranha com tantas transformações profundas e graves, em dias passados em quartos calmos e recolhidos e em manhãs à beira-mar, no próprio mar, em mares, em noites de viagem que passaram sussurrando alto e voaram com todos os astros, - e ainda não é bastante poder pensar em tudo isto. É preciso ter recordações de muitas noites de amor, das quais nenhuma foi igual a outra, de gritos de mulheres no parto e de parturientes leves, brancas e adormecidas que se fecham. Mas também é preciso ter estado ao pé de moribundos, ter ficado sentado ao pé de mortos no quarto com a janela aberta e os ruídos que vinham por acessos. E também não é ainda bastante ter recordações. É preciso saber esquecê-las quando são muitas, e é preciso ter a grande paciência de esperar que elas regressem. Pois que as recordações mesmas ainda não são o que é preciso. Só quando elas se fazem sangue em nós, olhar e gesto, quando já não têm nome e já se não distinguem de nós mesmos, só então é que pode acontecer que, numa hora muito rara, do meio delas se erga a primeira palavra de um verso e saia delas. ..."

Rainer Maria Rilke (1875-1926), in Os Cadernos de Malte Laurids Brigge (pgs. 41/2) - trad. de Paulo Quintela.

6 comentários:

  1. A poesia é depuração.
    Mas quanto à época em que deve ser escrita, a citação de Rilke não está muito de acordo com o que APS pensa.

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  2. Ao evitar publicar cedo, cumpri o desígnio de Rilke - é certo, com o conselho de Eugénio, sábio e experiente, nesta matéria (renegou "Narciso", "Pureza" e "Adolescente") que me dizia: "nem todos somos Rimbaud ou Keats...". Depois, 40 anos passados, a amizade do António contrariou o propósito, como a MR sabe...
    Mas concordo, inteiramente, nos 10 versos de Rilke, nos 2 ou 3 poemas essenciais, porque cada ser humano, de verdadeiramente novo, não terá muito mais para dizer. Que o resto, são versinhos ajuntados, para deslumbrar famílias babosas e amigos acríticos...
    Seja como for, esta é uma das maiores reflexões sobre Poesia, que eu conheço. Há também um outro texto de T. S. Eliot, admirável, sobre o tema. Dois grandes poetas, em suma.

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  3. Aditamento cordial:
    versos bons na velhice, continuo a pensar, que são raros. Mas, é certo, na juventude, acerta-se, terrivelmente, sem saber. Poderá haver um prolongamento meditado, naquilo que se escreve mais tarde. Mas é a "techne"...
    Excepcionalmente, só me lembro de Sá de Miranda e talvez Camões, em Portugal. Inteligentemente, Eugénio usou a prosa...poética.

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  4. Apreciei aqui, para além do pensamento de Rilke, a belíssima tradução de Paulo Quintela, que foi meu professor em idade já avançada. E lembro-me de o ver cheio de emoção, muitas vezes de lágrimas nos olhos, a ler poemas de Hölderlin... Penso que este foi um poeta algo tardio, o que vem ao encontro desta reflexão de Rilke sobre Poesia.
    Boa noite!

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  5. Paulo Quintela tive-o apenas (temerosamente, para mim, todo nervoso) no Exame de Aptidão, fazendo par com Providência e Costa. Nunca foi meu professor, porque depois vim para a U. de Lisboa, mas ainda fui colega da filha, que era uma rapariga simples e simpática.

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