quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Heidegger, sobre um quadro de Van Gogh


É um dos quadros mais impressivos e conhecidos de Vincent van Gogh (1853-1890), e terá sido pintado por volta de 1886. É uma pintura pequena (37,5 por 45 cm.) e pertence ao acervo do Museu van Gogh, de Amesterdão. O par de sapatos, ou botas de camponês, que serviram de modelo para a obra, terão sido comprados pelo Pintor numa Feira da Ladra, já usados, mas ele ainda os calçou e utilizou. É comum interpretar-se esta Natureza Morta como representando a dificuldade de viver ou a difícil profissão dos agricultores holandeses de então. Na sua obra Der Ursprung des Kunstwerkes, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) aborda o quadro de uma forma muito própria. Passo a transcrever e traduzir um pequeno excerto, mais significativo:
"... Na boca escura do desgaste interior respira fundo a fadiga dos passos laboriosos. Na rude gravidade dos sapatos está representada a tenacidade da lenta marcha através dos largos e monótonos sulcos da terra lavrada, por onde sopra um vento rouco. No couro está tudo o que há, de húmido e gorduroso, no solo. Por baixo das solas desliza a solidão do caminho que atravessa a tarde que cai. E nos sapatos vibra o tácito chamamento da terra, a sua repousada oferenda do trigo que amadurece e a sua enigmática recusa em abandonar-se ao ermo campo baldio do inverno. Por essa utilidade ele afronta o mudo medo pela certeza do pão, a calada alegria de voltar a sair da miséria, o palpitar diante da chegada do filho e o trémulo receio pela morte em volta. Propriedade da terra é este o lado útil e o resguardo do mundo do camponês. Desta recatada propriedade emerge o concreto mais útil do seu repousar em si. ..."

Nota: a tradução do texto foi feita sobre a versão espanhola de Samuel Ramos.

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